Uma crónica sobre leitura

Por Marina Preguiça.

Um breve passeio pela alameda da memória leva-me de regresso à primeira série que
vi na vida: não foi Tom Sawyer, não foi Ana dos Cabelos Ruivos nem Era uma vez a vida. A
primeira série que vi na vida foi, nem mais, nem menos, que A Balada de Hill Street. Lembro-
me que passava na RTP à noite, mas não me lembro em que dia da semana. Lembro-me
também da música do genérico, dos agentes da polícia, mas lembro-me sobretudo de estar
deitada no sofá, com a cabeça no colo da minha mãe, e de ser embalada pelas imagens na
televisão e pelo som da voz dela a ler-me as legendas. A Balada de Hill Street passou na RTP
nos anos 80 e eu só entrei na escola em 1989. Ou seja, se queria entender alguma coisa do
que estava a ver, tinha que ser a minha mãe, com todo o seu amor e paciência, a resolver o
meu problema de analfabetismo.

No dia em que ouvi o episódio do FEMINA com a Francisca Camelo, no momento em
que ela revelou que o seu maior sonho em criança era saber ler, veio à superfície uma verdade
sobre mim de que já me tinha esquecido: quando era criança, um dos meus maiores sonhos
também era saber ler. Com a história da Francisca recordei que gostava de ser embalada pela
voz da minha mãe, mas o que queria realmente era ser eu a ler o que passava no ecrã. Para a
Marina de cinco anos, conseguir acompanhar sozinha aquelas frases que passavam tão rápido
significava ser crescida, independente e estar muito mais perto do mundo dos adultos do qual
queria tanto fazer parte. Mas lembro-me também que não era só para ler as legendas que
queria tanto aprender a ler. Queria também entrar no quarto dos meus pais, pegar nos livros
que lhes decoravam a cabeceira da cama e descobrir tudo o que eles escondiam. A curiosidade era grande e crescia ainda mais de cada vez que me apanhavam com eles na mão e me obrigavam a largá-los. Só mais tarde é que soube que Trópico de Câncer, Trópico de Capricórnio, Papillon e outros não são a literatura mais apropriada para crianças de cinco ou seis anos.

Uns anos depois, já livre da minha iliteracia e com um cartão da biblioteca na mão,
devorei a coleção Uma Aventura, sonhei em fazer parte do Triângulo Jota e passei noites
aterrorizada depois de ler Arrepios. Percebi que o Clube das Chaves não me enchia das
medidas, que a Anita era demasiado infantil e antiquada e as aventuras dos Cinco também
ficavam abandonadas na prateleira, para grande desgosto da minha mãe. A semanada curta
não chegava para comprar a Ragazza, a Super Pop, a Bravo e a Super Jovem, mas a
necessidade aguça o engenho e eu e as minhas três amigas concordámos que cada uma
compraria uma revista e depois fazíamo-las rodar entre nós. A adolescência no final dos anos
90…!

O meu amor pelos livros e pela literatura não se perdeu com os anos, mas
transformou-se. Na maior parte dos dias, aparece-me como um fardo que, depressa, se
transmuta em frustração e desânimo. Não consigo ler tudo o que quero e, o que consigo, sinto
sempre que é insuficiente. Comparo-me com pessoas que, aparentemente, leem muito mais
que eu e sinto-me uma falhada. Inscrevo-me em Clubes de Leitura para, na maior parte dos
meses, lidar com o desapontamento de não ter lido os livros até ao fim. Estabeleço metas
anuais, mensais, semanais e diárias, mas nunca as cumpro.

Faço planos para transformar o tempo que passo nas redes sociais em tempo de leitura, mas, sem surpresa, o resultado é mais um falhanço. Dou voltas e mais voltas ao assunto e não consigo descortinar se sou preguiçosa, se tenho dificuldades em concentrar-me, se o problema não sou eu, são os livros, ou se sou demasiado exigente comigo própria.
Talvez seja tudo isto, talvez seja algo completamente diferente. Seja qual for a resposta, continuo a gostar de passear pelas livrarias, a ser praticante de tsundoku, a sentar-me horas em bibliotecas e a querer ler um poema ao acordar e outro ao deitar.

Marina Preguiça

Feminista, ecologista e actriz, tudo de forma imperfeita e amadora. 
Ouve podcasts, lê menos do que queria e vê mais televisão do que devia.


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